Estampas e o Direito da Moda: algumas reflexões

 

Na moda é muito comum o uso de imagens, desenhos e até frases para estampar roupas e acessórios. Pode ser a já clássica camiseta com o logotipo da banda Ramones, dos super-heróis das histórias em quadrinhos, do Mickey Mouse ou até o tênis com a cara do apresentador Fausto Silva, que, por exemplo, andou circulando pela internet há um tempo.

Quais são os reflexos disso no mundo jurídico? É o que veremos ao longo deste artigo. Com a consolidação e o sucesso da cultura pop no mundo globalizado, e a sua onipresença no cotidiano da população, muitas empresas comercializam roupas e acessórios com estampas gráficas e elas variam entre logotipos de bandas musicais, suas letras, desenhos animados, séries e filmes, até rostos e frases de celebridades. Primeiro, é preciso fazer uma distinção rápida entre Direitos Autorais e Direito de Imagem, que, embora semelhantes, possuem diferenças sutis. Direito Autoral se refere à criação de uma obra artística, literária ou científica, protegendo-se a obra criada em si (desenho do Pato Donald, por exemplo). O outro refere-se à aparência de uma pessoa, a sua imagem, incluindo: rosto, mãos, pés, tronco e voz, bem como a sua reputação perante à sociedade. Portanto, direito autoral e de imagem andam juntos com frequência, porém são matérias próprias.

A Lei 9.610/98 disciplina os Direitos Autorais no Brasil, obedecendo à Convenção de Berna, tratado internacional que regula a matéria em âmbito internacional. Portanto, teremos tratamento parecido ao das obras artísticas na maior parte do mundo. A lei diz que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro”. E, logo em seguida, lista vários exemplos de obras artísticas como: os textos de obras literárias, artísticas ou científicas, as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, litografia e arte cinética, as composições musicais, tenham ou não letra, e as obras fotográficas e as produzidas por qualquer processo análogo ao da fotografia, entre outras.

Lembrando que o direito de autor divide-se em duas partes: patrimonial e moral, sendo um o pedaço de que o criador pode dispor livremente (vender, transferir, licenciar) e o outro, pedaço aquele de que o criador não pode dispor, que é a paternidade/maternidade (os créditos no uso) e a integridade da obra. Além disso, a partir do momento em que essas obras são desenhadas e assinadas pelo seu autor ou sua autora, elas já possuem a proteção da lei, conforme os artigos 11 e 18 da mesma lei, sendo o registro meramente facultativo. Ainda, essa lei coloca a necessidade de autorização prévia e expressa do criador para que sua obra seja estampada numa camiseta e vendida numa loja. Caso esse criador tenha cedido os direitos patrimoniais de autor para um terceiro, esse detentor será capacitado a fornecer a autorização para o uso.

O artigo 29 diz que depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades, tais como reprodução parcial ou integral, adaptação, tradução para outros idiomas, entre outras, incluindo quaisquer outras modalidades de utilização existentes ou que venham a ser inventadas. E o artigo 28 não deixa dúvidas, pois cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica. Sendo assim, é preciso solicitar autorização prévia do criador para o uso.

Além da autorização, é necessário sempre dar o crédito ao criador no uso de sua obra, conforme a lei no Brasil manda, colocando o seguinte: “Quem, na utilização, por qualquer modalidade, de obra intelectual, deixar de indicar ou de anunciar, como tal, o nome, pseudônimo ou sinal convencional do autor e do intérprete, além de responder por danos morais, está obrigado a divulgar-lhes a identidade”.

Assim, podemos concluir que é fundamental dar crédito a quem criou a obra, caso contrário incorre-se em dano moral, conforme o artigo 108 da lei. Por exemplo, um desenho criado por uma pessoa para estampar uma camiseta deve carregar o símbolo, nome ou sinal identificador de quem o criou, sob pena de se incorrer em violação de direito moral de autor e, por consequência, arcar com danos morais. Esse nome pode estar ao lado do desenho ou na etiqueta, mas não deve deixar de ser incluído.

Há situações e obras que não estão sob proteção dos Direitos Autorais, caso de obras em domínio público. Veja bem, domínio público não se confunde com logradouro público. O primeiro é a ocasião em que expira o direito patrimonial do autor, e no Brasil são 70 anos após sua morte. Repare que o direito moral não expira nunca. Já o segundo é o local onde se encontra a obra, por exemplo, uma escultura de autor vivo exposta numa praça pública para visitação e contemplação de todos. Assim, uma obra pode estar em logradouro público, mas não em domínio público. Então não é preciso solicitar autorização para estampar uma frase de uma obra de Machado de Assis, ou William Shakespeare, por exemplo, mas deve-se evitar a deturpação da obra e dar os créditos ao criador. A regra é contar 70 anos da morte do criador da obra. Caso já tenha se passado tal tempo, a obra entra em domínio público, sendo dispensada, portanto, a necessidade de autorização prévia dos herdeiros do criador.

Dessa forma, trechos de obras de Machado de Assis podem ser estampados em roupas e acessórios, sem necessidade de autorização prévia, devendo-se, porém, respeitar a integridade da obra. Sobre o Direito de Imagem da pessoa, o Código Civil afirma, em seu artigo 20, que “salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da Justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”. Ademais, é coerente com a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXVIII, alínea a. Vejamos:

XXVIII  — são assegurados, nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas.

Portanto, até mesmo a imagem de uma pessoa, para ser estampada em roupas e acessórios, além de seu nome e voz para os mesmos fins, depende de autorização prévia e expressa da pessoa retratada, sob pena de se incorrer em danos morais.

E, nesse caso, o dano moral é presumido, conforme precedente do Superior Tribunal de Justiça, Súmula 403, que diz: “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”.

As formas mais comuns de se ajustar o uso de uma obra artística pela indústria têxtil são os Contratos de Cessão e Transferência, que consistem na venda definitiva dos direitos da obra (exceto direitos morais, naturalmente indisponíveis), em que o cessionário os compra. A outra forma de ajuste contratual é o Contrato de Licenciamento, que consiste na autorização temporária de uso da obra, podendo ser onerosa ou gratuita, dependendo do criador. Além disso, todas as modalidades de uso da obra devem estar previstas nesse contrato, pois interpretam-se restritivamente os negócios jurídicos sobre os direitos autorais. Isso quer dizer que a modalidade de uso não prevista expressamente ali é como se não estivesse combinada. Por fim, é preciso atentar ao prazo. Se o licenciamento de obra ou de imagem tiver prazo certo, passado tal prazo os direitos voltam à esfera do autor, e caso seja preciso utilizar ou veicular novamente, deve-se obter nova autorização de uso de imagem ou obra artística, sob pena de se incorrer em uso não autorizado e, por consequência, danos materiais e morais. Essas são as implicações mais comuns nos negócios empresariais atinentes à moda.

 

Valquíria Saboia é advogada, editora do blog “Fashion Law VS” e presidente do Instituto Brasileiro de Arte, Direito e Moda (IBRADIM). Pós-graduada em Direito Civil, com enfoque em Direito da Moda.

 é advogado especializado em Direito do Entretenimento e pós-graduando em Propriedade Intelectual, Entretenimento e Mídia pela ESA/SP e em Gestão Cultural pela Universidad Nacional de Córdoba/ARG.